Tarde morta e as ideias girando como os redemoinhos em rodopios de poeira e folhas recém-perdidas. Existe algo de misterioso na tarde vazia de gente e cheia de pensamentos. Meu olhar perde-se na paisagem, mas nada há ali que possa se destacar. Só as árvores de ramagem rala e folhas miúdas. Folhas que desaparecem na voragem da fome grande, infinita, insaciável. O campo de grama seca deixa à mostra tufos pardacentos em alguns pontos e terra vermelha em outros. O único ruído é o farfalhar das últimas folhas e o cricri das cigarras, grilos ou quem sabe dos gafanhotos. Sim, gafanhotos que saltam por entre a vegetação rasteira ou experimentam voos curtos em busca de comida. Eles abandonam os tocos pelados atrás de si e, gulosos, buscam ervas novas para matar uma fome de tudo. Nada sobrevive à sua passagem. Enxames escuros saíram dos charcos em direção as lavouras maltratadas pela seca. Nada pode detê-los. No céu, ao longe, entrevejo nuvens parecidas com fiapos de algodão varridas pelo vento. Não são nuvens de trazer água para a terra ressequida. São nuvens de ver coisas, figuras desenhadas e desfeitas em rápidas pinceladas pelo vento quente e seco. Esfrego a bota no chão. E esse ato acende uma luz cá dentro dos miolos. Jurema deitada ali, à minha frente com os olhos tão abertos, tão grandes, que neles cabia o mundo. Não gritou de voz, de boca, mas o corpo revoltou-se em movimentos de pernas, sofreguidão de mãos, unhas procurando carne. Reguei seu ventre e ela regou a terra com a seiva original, única. Depois disso havia o nada. Ela se foi, como as outras. Mas, por desgraça, ainda a vejo em pensamentos, a correr em meio às crianças em brincadeiras de pega-pega e esconde-esconde. Cabelos ao vento. Cabelos lisos como espiga de milho verde. Tão pretos os cabelos da Jurema. Depois daquele dia tudo virou nada. Só o vazio por dentro e por fora. Culpa dela. Claro que foi. Lá no baile desfez da minha presença, ignorou meu olhar. Logo eu, dono da terra onde ela nasceu, da terra que pisou, onde enterraram o seu umbigo. Das outras nem lembro direito, mas da Jurema não dá pra esquecer. Foram os olhos. Olhos tão grandes, tão cheios de pavor. Tem coisas que atrelam a gente em um vácuo, vácuo escuro com cheiro de morte. Agora, sou pássaro preso no piche, sem esperança de alçar voo. Penso na casa, lá no baixio, ao lado da vertente do Salto Verde. Casa vazia. Nem mulher, nem filhos. Nada. Os empregados também se foram. Fugiram, Infelizes. Medrosos! Gentinha, bem sei. Cheios de superstições e temores. Até os vizinhos. Todos. Agora só o silêncio dos meus passos. Nem o latido dos cães. Gostava deles. Eram tantos… Agora nada. Uma cocheira sem relinchos ou mugidos. O cheiro forte chega em ondas, vindo de todos os lados. As galinhas cobrem o terreiro como neve. Galinhas brancas agora pintadas de vermelho. Vermelho! Tinha uns treze anos a Jurema. É, pelas minhas contas eram treze. A primeira filha do Inácio, que me tomou como compadre. Padrinho daquele filhote de gente a choramingar, como se chorasse de antecipação. As crianças choram pelo que virá, adivinham o amanhã. Ninguém sabe. Só eu, que sigo por entre a erva seca, comida de gafanhoto. Quero abeirar-me do rio. Pedras. Apenas pedras limosas e escuras, sem lampejo de água me esperam. Onde a vertente do Salto Verde? Onde? Só vejo peixes em putrefação, peixes de todos os tamanhos. Tem gente que gosta de pescar, fisgar os bichinhos, estripá-los e então jogá-los na frigideira cheia de óleo quente. E depois os comem, estalando espinhos e lambendo os beiços. O céu se tinge de vermelho e essa cor se espraia sobre tudo. É o poente. O sol procura abrigo, fugindo da noite. Escuridão para ocultar quem não quer ser visto. Sob as árvores, antes ramosas de largas folhas, pássaros cobrem o chão como formigas. Formigas que eles comiam, assim como as sementes e minhocas. Agora tudo se tornou nada. Nada escapou. Apenas os gafanhotos e eu. Nhá Maria negaceou, e foram muitas as negativas. Mas uma faca em seu pescoço abrandou a resistência e ela contou o segredo. Ali mesmo fiz o sacrifício. Foi com o seu sangue que me banhei, em frente ao fogo, dançando com o tinhoso, conforme o ritual. Naquela hora comprava o direito à eternidade em troca da alma, se é que alma existe. Alma! Todo o mundo fala em alma, espírito, força interior. Só eu sei que somos pequenas chamas do Fogo Eterno. Fogo que o tinhoso receia. Sem essa chama, tudo morre, tudo seca, tudo perece. Pensei-me imortal, mas se toco em algo, esse algo morre. Foi assim com a mulher e os três filhos. O maiorzinho deles botando barba.. Perdi a alma por nada, pois não posso usufruir, tirar proveito das coisas, da vida. O encanto, bruxaria ou sei lá que nome se dê a isso tinha uma condição. Apenas uma. Um imortal não pode cavalgar filhas, pois aí se torna morte. Como eu poderia adivinhar que afilhada é como filha no reino dos céus. Isso Nhá Maria escondeu.